Escreveu dezenas de livros, mas sabe que nunca mais lhe surgirá uma história como aquela, a da princesa Diana. Andrew Morton esteve em Lisboa, bebeu cerveja gelada e pensou em Espanha: o seu último livro chama-se Ladies de ESpanha e resume a história da monarquia que ele considera estar "um caco".
Andrew Morton queria ser jornalista de política, mas era alto e dava mais jeito a espreitar por cima de uma cerca. Seria, decidiram no jornal tablóide onde trabalhava em 1982, jornalista de assuntos reais. "Não sabia nada sobre a família real... sabia que o Philip do príncipe Philip se escrevia só com um L" - risos.
Andrew Morton é escritor e lançou um livro. Mais um, e este cruza os dois temas que o tornaram famoso - a realeza e o perfil de celebridades. Chama-se Ladies de Espanha e resume a história das quatro mulheres da monarquia espanhola - Sofia (a rainha), Cristina e Elena (as infantas) e Letizia (a mulher do herdeiro do trono).
É um livro com um tema e um timing perfeitos. Num momento em que as outras monarquias europeias estabilizam e até ganham popularidade, a espanhola está "um caco", como diz Morton. As mulheres ajudaram a destruí-la e podem ajudar a tirá-la de onde está.
Está tudo explicado no livro que trouxe Andrew Morton a Lisboa, onde repetiu, para jornais, televisões, revistas generalistas e de temas sociais, as mesmas histórias. Morton é o primeiro a saber que it comes with the job, que em tradução livre quer dizer "faz parte". "Mas apareceram perguntas muito boas", diz enquanto muda de lugar. Aleijou uma anca a fazer exercício e troca o sofá por um banco alto, no bar. Também tira o casaco. Já bebeu muito café e água e agora pede uma cerveja gelada. Voltamos ao princípio.
"O meu primeiro trabalho foi escrever sobre o príncipe André e a Koo Stark, que era uma actriz de cinema soft porn e dizia-se que eles tinham casado em segredo nas Caraíbas." O segundo trabalho foi acompanhar a rainha Isabel II à costa Oeste dos Estados Unidos, onde o Presidente Ronald Reagan a recebeu no seu rancho de Santa Barbara. Morton teve a oportunidade de conhecer Frank Sinatra, Rod Stewart, Elton John, Joan Collins... "Descobri que aquilo era o mais divertido que podíamos fazer sem tirar a roupa."
Se o jornal queria que escrevesse sobre a realeza, espreitando por cima do muro ou dos outros jornalistas mais baixinhos, seria esse o seu caminho. E à família real dedicou o tempo e o esforço que imaginara gastar com a política da nação - conheceu as pessoas, procurou as fontes e criou laços de amizade e confiança com elas. Tornou-se trabalhador por conta própria, com fidelidade a um jornal - o Sunday Times - e diversificou o trabalho. "Tive a oportunidade de fazer entrevistas para a televisão e para a rádio e de escrever artigos de fundo em vez de apenas notícias."
Morton decidiu que o material que recolhia e as pessoas que conhecia lhe abriam uma segunda frente de trabalho, os livros. Desata a rir para falar do seu primeiro, Andrew the Playboy Prince - "o pior livro alguma vez escrito, disseram". Em menos de uma década - metade por acaso, metade por esforço -, seria de Andrew Morton a história mais importante sobre a monarquia do pós-guerra. Diana, a princesa de Gales, contou-lhe a sua verdadeira história - a infidelidade do marido, a solidão, a bulimia, as tentativas de suicídio. Morton já explicou tantas vezes como tudo se passou que não é preciso perguntar-lhe porque foi escolhido. Estava a pesquisar para uma biografia da princesa, já tinha bons contactos, no círculo de Diana sabiam quem era e confiavam nele e já lhe tinham sussurrado ao ouvido pontas soltas sobre a infelicidade e a necessidade que ela tinha de desabafar. "Eu conhecia o sistema. E já sabia que a realidade da vida dela não correspondia à imagem da vida dela. Os amigos, os colaboradores, davam-me dicas."
Em 1992, Andrew Morton ainda não era um autor famoso. Em 1992, ainda não se percebera que havia um "antes" e um "depois" na história da monarquia inglesa. E por isso Morton foi criticado e vilipendiado pelos seus próprios pares, pelos jornalistas, os da imprensa tablóide e os de referência, que não acreditaram no que publicou no Sunday Times para preparar a nação para o livro, Diana - Her True Story - e o grande escândalo que ele continha.
E se era verdade, questionaram os outros, deveria ser publicado? A história desses dias de incredulidade e negação está contada num documentário recente, Diana - her true story, que narra o processo de construção do livro. Morton dava as perguntas escritas a um amigo da princesa que as passava a Diana que, depois, gravava as respostas. "Foi um extraordinário acto de fé da parte dela e um extraordinário acto de desespero", diz Morton no documentário.
Há-de ter muita satisfação ao ouvir, agora, no documentário, os descrentes de então redimirem-se e dizerem que o seu livro "está numa liga à parte na história do jornalismo real". Há-de ter um sentimento de orgulho ao ouvir o reputado jornalista Max Hastings, que na época definiu o seu trabalho sobre Diana como "lixo", dizer que foi "mesmo estúpido" ao afirmar na rádio e na televisão que "aquilo não devia ter sido publicado" porque "aquilo não podia ser verdade".
"Nunca mais me irei deparar com uma história como aquela", diz Morton a beber a cerveja gelada. Mas o que quer dizer é que nunca mais haverá uma história assim.
O livro que escreveu sobre Diana - ou que ela quis escrever através dele - foi um choque eléctrico que atravessou os dois lados da equação. Fulminou a monarquia e fulminou os súbditos. A primeira teve de deixar de lado comportamentos morais antigos e duvidosos. Os segundos tornaram-se menos súbditos e mais cidadãos, exigindo à família que representa uma ideia de nação um comportamento à altura. Em 1980, a monarquia europeia entrou, sem saber, no período mais complexo da sua existência. A antiga e protocolar monarquia britânica seria a que iria catalisar o impacte de todas as mudanças sociais, culturais e políticas da prodigiosa década.
Diana desconhecia (porque não lhe disseram) as regras do salão para onde entrara: os príncipes, sobretudo os herdeiros, não casavam por amor, não praticavam a vida em família, procriavam com as mulheres mas não tinham de lhes dar afecto. Carlos tinha, portanto, uma amante, para quem reservava o amor e a cumplicidade, e Diana não gostou.
O desenlace é conhecido. A família desmoronou-se e desapareceu para sempre uma ideia de monarquia que, durante décadas, não foi questionada mas que era agora repudiada por uma geração mais nova, mais informada e socialmente irrequieta. O edifício da monarquia inglesa estava irremediavelmente arruinado - destruía-se a partir de dentro como mostrava Diana (e Morton). Foi irónico que a sua morte tenha ajudado a reerguer o edifício.
Foram vendidos sete milhões de exemplares com a história de Diana, e Andrew Morton ficou rico. Também ficou sem parte da carreira - como poderia continuar a espreitar por cima dos outros? Acabavam-se os seus dias de royal reporter, um trabalho que não tem qualquer problema em definir como "dar ao público a fofoca do momento".
"É claro que é fofoca. Num dia mau é sobre o vestido que ela tem vestido, num dia bom é sobre uma controvérsia num discurso do príncipe Carlos. Nunca se sabe." Mas o que interessa, frisa Morton, é que na época, nos anos 1980 e início dos 90, a família real britânica era "a primeira família internacional" e tudo o que se escrevesse sobre ela tinha audiência. "Era uma verdadeira indústria."
"Agora ainda tem um interesse considerável, mas já não é tão intenso." Morton diz que a cultura da celebridade ofuscou a condição real. "Nos anos 80, que futebolista é que era uma celebridade? Ou que artista pop? Agora temos um vasto grupo de gente que encaixa nesta categoria e a realeza tem de competir com as celebridades todas; Catherine [a duquesa de Cambridge] é comparada com Gwyneth Paltrow, por exemplo. A celebridade é o deus do século XXI."
No livro Ladies de Espanha - onde a introdução e a conclusão são os capítulos mais interessantes, no sentido em que revelam como um autor habituado a reflectir sobre o tema monarquia vê a evolução da instituição -, Morton explica parte do motivo para esta descida de estatuto. Eles querem ser "normais" - "é uma contradição de que me falam as pessoas que trabalham com o príncipe William", revela.
Uma citação do livro: "O príncipe William fez desse desejo uma obsessão (...) É evidente que a imagem da normalidade põe em relevo a diminuição da influência da monarquia - constitucionalmente, politicamente e culturalmente. (...) No seu desejo de viver uma vida semiprivada normal, os membros mais jovens da realeza, quer sejam plebeus ou de sangue azul, passaram na ponta dos pés por cima da pergunta inevitável: se eles próprios não se consideram diferentes das pessoas normais, porque têm de desfrutar dos privilégios?" Bons privilégios, diz Morton, "não pode ser mau conhecer as pessoas que eles conhecem, fazer o que eles fazem". Conta uma história sobre como são diferentes as gerações: um dia cruzou-se com o Philip só com um L, que é o marido da rainha, e disse-lhe, educadamente "Bom dia, senhor"; "ele lançou aquele olhar que diz "Quem é que pensas que és para me estares a dirigir a palavra?""
Morton não o diz claramente, mas sugere que há um erro de avaliação na via da normalidade desejada pelos herdeiros do século XXI. "Toda a gente esquece um dado essencial de que os antropólogos falam: a sociedade, seja a nossa sociedade sofisticada cheia de iPads, seja uma nos confins do Pacífico Sul, constrói histórias mágicas com príncipes e princesas. É um processo natural." Cabe aos monarcas e futuros monarcas não esquecê-lo porque "se num país onde corre tudo às mil maravilhas a questão [da normalidade] cai por si mesma, num país que atravessa uma crise pesa-se o valor da coroa" e se vale a pena mantê-la.
Morton diz que há outra explicação, mais complexa, que pode elucidar esta obsessão com a "normalidade". A nova fornada de herdeiros é a primeira a olhar para a coroa como "um trabalho" que, um dia, acaba e a vida segue. "Um rei e uma rainha têm o direito de se reformar, certo?", pergunta, dizendo que já é altura de também o Reino Unido deixar de ter medo da ideia e convencido de que William será o primeiro monarca inglês a decidir, um dia, deixar o trono - Isabel II e Carlos, quando for rei, não o farão, diz.
William, diz Andrew Morton, só terá de equilibrar o desejo de ser normal com a função que não é normal. Porque, quando for a sua vez, não vai poder fazer o que fez na aula de Declan Quigley (que foi professor do príncipe na faculdade), quando este decidiu falar sobre a natureza da realeza. Explicou o professor que a coroação existe para elevar um indivíduo acima dos outros e William enterrou a cabeça nos braços, fingindo que dormia.
"Quanto mais parecido connosco se torna um rei, menos motivos há para ter um", diz Morton, a quem agora chamam royal watcher (pode dizer-se que está um grau abaixo de um analista porque a sua especialidade ainda tem uma carga grande de fofocas) e é chamado por canais de televisão e publicações para comentar casamentos (o de William e Kate), abdicações (as da rainha Beatriz da Holanda e do rei Alberto da Bélgica) e as grandes crises (a espanhola).
O livro novo, apesar do nome, Ladies de Espanha, é em primeiro lugar sobre o reinado de Juan Carlos, a figura que atravessa as 240 páginas editadas pela Esfera dos Livros.
Quando foi promover o livro a Espanha, Andrew Morton disse que é possível que tenha de existir uma mudança no trono espanhol. "Pode acontecer antes do esperado, quando o problema de Iñaki [o genro acusado de corrupção] passar ou quando o rei comemorar os 40 anos de reinado."
Se os anos 80 se "atiraram" à monarquia inglesa, esta década de crise económica, política e social "atirou-se" à espanhola. Há paralelismos que podem ser feitos, sendo o primeiro deles a ideia de que a realeza não pode viver num mundo à parte do das outras pessoas.
A crise da monarquia espanhola apanhou, em primeiro lugar, o rei. Na semana em que o Governo espanhol apertava o cinto aos cidadãos, Juan Carlos estava em África a caçar elefantes e ao seu lado estava a namorada alemã, uma aristocrata chamada Corinna zu Sayn-Wittgenstein.
A notícia da amante do rei não surpreendeu os espanhóis, que já sabiam que Juan Carlos e a sua rainha, Sofia, eram apenas um casal protocolar. O diário El Mundo juntou um elemento mais duvidoso à história, ao divulgar que Corinna se portava, há anos, como intermediária em negócios de empresas espanholas no estrangeiro, cobrando 3% de comissão. O estatuto de amante do rei abria-lhe portas de um lado e dava-lhe um chorudo rendimento do outro.
Em simultâneo, o escândalo Urdangarín eclodiu. O genro perfeito, como lhe chamou tanta vez a imprensa espanhola, está a um passo da prisão por enriquecimento ilícito e outros crimes de corrupção. A mulher, Cristina, é suspeita de ter ajudado o marido a encher o cofre pessoal - em oito anos, declarou seis operações financeiras no valor de três milhões de euros, verba que está a anos-luz da sua capacidade e do seu salário na Fundação La Caixa.
"A corrupção na casa real é visível e isso deu aos comentadores legitimidade para discutirem o papel do rei e também a forma como gere a sua vida privada", diz Morton, que, no livro, explica como se casavam os príncipes há 40 ou 50 anos.
Mas como é que um genro e uma amante podem transformar uma monarquia num "caco", que é a palavra que Andrew Morton usa para descrever o estado a que chegou a espanhola?
De todos os monarcas da Europa, Juan Carlos é o único que se aproxima da ideia de rei absoluto. Num país onde o sentimento monárquico é residual e a instituição imposta (por Franco), Juan Carlos fez assentar a sobrevivência da coroa na sua imagem e no seu prestígio. Perdida a credibilidade e simpatia do povo, não foi só Juan Carlos que ficou em perigo, foi a casa reinante, os Bourbon.
Entra em cena Letizia, neta de um taxista, filha de um republicano e princesa por casamento (com Felipe, o herdeiro), que Morton diz ser a única pessoa capaz de salvar a coroa. Letizia reúne todas as parcelas da equação que compõe a monarquia de hoje: é uma mulher parecida com as outras porque usa roupa da Zara, viveu o conto de fadas que os antropólogos dizem ser do agrado do povo e transformou-se numa celebridade, desempenha o papel como uma profissional e faz questão de mostrar que está muitos degraus acima dos restantes. E ao lado dela, diz Morton, o marido que era rígido e distante, tornou-se uma figura mais descontraída e simpática - se bem que ainda comete gafes que derivam do seu alheamento; há algumas semanas, ao sair do funeral do pai de um amigo, apertou a mão a um sem-abrigo que lhe pedia dinheiro pensando que a criatura o queria cumprimentar.
"A minha percepção diz que as monarquias só correrão riscos quando a classe política decidir agir. Há alguns políticos mais inconformistas que consideram as monarquias demasiado caras, etc., mas não há uma vontade política generalizada para acabar com elas. Neste momento, só a espanhola está em risco."